sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Diálogo


- Por que você voltou?
- Para passar a vida como o vento.
- Aqui não há vento, não há nuvens, há paredes apenas.
- Sou lírica seiva a pulsar imperceptível sob a cartilagem.
- O que você vê?
- Vejo conceitos, conselhos e conventos.
- Há rumores?
- Não, há roedores.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

CRISE




Sou feita de palavras. Minha vida foi escrita a lápis; meu passado é feito de marcas deletáveis que permanecem ao fundo, em borra e pressão, sobre o papel. Minhas mãos são as tesouras do tempo. Meus pés são rachaduras de algodão. Meus passos, inaudíveis e invisíveis. Minha idade, apocalíptica. Meu futuro só é real quando inventado.

Vivo no espaço em branco entre o começo e o fim. Aliás, o que é a vida, senão o vazio entre fui e serei? Daqui do meio, não vejo nenhum dos lados, apenas imagino. Não é possível voltar nem ir adiante, então permaneço somente. A visão é turva, enevoada, esvoaçante. Olho para trás e vejo lascas de sombra, ritmos estilhaçados, teatro oco e mascarado. À frente há revólveres antecipados e o elástico estremecer dos cadáveres entalhados nas teias de vidro que te sustentam.

Cavei buracos entre passado, presente e futuro, e agora é preciso tapá-los para que eu fique visível. Sou o instante imediato, o centro absoluto, a ficção essencial que organiza o tempo e explica os porquês. Sou feita de histórias, estórias, vitórias, ruínas – mariposa de variadas plumagens a tecer os anais da História. Sou morfologicamente permanente e sintaticamente transitória.

Caminho sobre covas suspensas em liquido cemitério. Vomito ansiedades e mudanças. Revelo a enfática lâmina a costurar nuvens em palco de espelhos. Faço parte da ambigüidade deslizante que abrevia o alvo e descostura o arqueiro.

Sou a consciência que explica seu perímetro e apara suas arestas. Sou o fim prematuro epileticamente triturado.

Bem-vindos, mais uma vez, ao deserto entre. Apertem os cintos. Viajaremos por tempo indeterminado.

Res-piração instantânea


Foi inesperado.

De repente, olho pela janela e vejo o passado, parado ali, no terreno à minha frente.

Eu, a janela e o passado. Bem ali, no lugar onde nascemos. Já me havia esquecido do que, de quem. Eu-ele-fui. Poucas palavras, respiração em flor. Por um instante: imagens, miragens, silhuetas, re-cortes, nuvens, espelho. Fui-foi. Não houve olhares, apenas fatia, eco, tijolos e cimento. Descosturar, condensar, estremecer, refratar.

Fecho os olhos para desinflar. Quando abro, vejo surgir no vão da porta o presente e o futuro, de mãos dadas. Eu, a janela, a porta, o passado, o presente e o futuro. Ali, no lugar onde nos validamos. Naquele segundo: respiros, respingos, tomadas, lunetas de papelão, giro de maçaneta. Óperas díspares, o tempo encavalado. Sinto inflar a lâmina oca a empalhar as cinzas.

O presente entra, cumprimenta o passado, cochicha algo ao futuro e caminha em minha direção. Estilhaço as horas e abraço o instante. Não há algodão no rouco entoar das porcelanas. Fecho os olhos. Inspiro. Expiro. Inspiro. Expiro. Não ouço mais a canção de cimento. Inspiro. Expiro.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Sobre palavras e coisas


As palavras moram nas coisas ou as coisas é que moram nas palavras? Quem é reflexo de quem: a coisa ou a palavra?

Tem palavras que são mais reais que as coisas.

"O sentido do universo é
o verso
que jaz escondido, não falado,
dentro do seu silêncio."

(Rubem Alves, Lições de Feitiçaria)

Você é real ou é de plástico?


"Tudo é real porque tudo é inventado"

(Guimarães Rosa)

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Sobre relógios, roupões, relâmpagos e ratoeiras


A badalada que se reveste em luminosas armadilhas
O tique-taque abafado pelo relampear das arapucas
O tempo, que se resseca em trovões e emboscadas

Fondue



Quero fundir o eu-você em inspiração e saudade. Roo as horas à espera dos gestos que se enovelam em esquizofrênico silêncio. Bovinamente. Epidermicamente escorregadios. Ainda crus, perfuramos as verdades que se alisam em memórias.